Continuando nossos passos pela Carta de Tiago, o capítulo 4 mostra o autor iniciando uma nova temática sobre a questão da língua e da busca da verdadeira sabedoria.
V – Uma alternativa – Tg 4,1-12
Vv. 1-6 – A sabedoria gera a paz. O autor não se preocupa com a realidade político-militar, mas com a realidade da comunidade (“entre vós”), embora não distinga a realidade religiosa espiritual da realidade sociofísica. Na literatura do NT, o termo “guerra” vem usado no contexto das polêmicas verbais (2Tm 2,23; Tt 3,9). O autor vê na concupiscência humana a origem dos conflitos, que causa uma contínua guerra no interior de cada ser humano e, por consequência, gera um conflito perigoso nas relações intersociais da comunidade cristã.
A expressão “matar” (2,11; 5,6) é de sentido geral, mostrando que a própria língua pode ser instrumento de morte. Da mesma forma, quem retira do próximo o necessário para nutrir-se, deixando-o no abandono, também é um “assassino”. A palavra “matar” pode ser vista ainda no sentido da inveja, pois o termo phoneuete (matar) pode ser variante de phtoneite (ser invejoso). A inveja, como porta de sentimentos agressivos, não contribui em nada para a vida; ao contrário, é arma que impede a vida pessoal e comunitária.
O texto aborda ainda a ineficácia de determinadas orações, no sentido de que o fiel não possui uma determinada graça divina porque não ora, ou melhor, porque ora mal. A concupiscência humana não impede uma vida de oração, mas, por vezes, corrompe esta vida orante, adulterando o sentido da oração. O fiel que se deixa conduzir pela sabedoria divina sabe que sua oração será sempre atendida. Contudo, o rezar como um filho implica uma condição preliminar: SER FILHO, AGIR COMO FILHO, possuir um determinado comportamento: o de ser cristão. Quem reza mal é comparado ao adúltero, ou seja, renega Deus. A base está na imagem do pacto matrimonial de Iahweh com seu povo, imagem muito usada no profetismo de Israel (Os 1-3; Is 1,21; 57,3ss; Ez 16.23) e seus ecos, nas narrativas sinóticas (Mc 8,38 //). Quem prefere o mundo comete adultério contra Deus, torna-se infiel ao pacto/aliança com Iahweh. Não se pode amar a Deus e ao mundo (1Jo 2,15). Quem escolhe a sabedoria do mundo se distancia de Deus.
A citação de Tg 4,5: “Ou julgais que é em vão que a Escritura diz: Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?” sugere Ex 20,5 e Dt 4,24, mostrando um Deus “ciumento” que ama com ardor todas as obras de suas mãos e recorda o bom espírito que Ele concedeu ao homem no momento da sua criação. Portanto, Deus não suporta a ideia de que o homem use de Seu espírito para criar ou deixar-se guiar por “outros espíritos”. Deus não se limitou apenas a criar o homem, mas ofereceu-lhe a graça da nova criação, a promessa de participar de seu Reino eterno. Para participar deste Reino, é necessário que o homem se deixe guiar pelo espírito de Deus, ou seja, retome a condição de criatura, retorne à graça da criação, renunciando às próprias grandezas, exigências, soberba e orgulho. (Ler Tg 4,7 12 – condições para viver segundo a nova criação).
Vv. 7-10 – Assim como Deus concede a graça apenas aos humildes, é necessário sujeitar-se a Deus com obediência radical. Quem se aproxima de Deus opõe-se ao diabo e a ação entre Deus e o homem se autocoopera. Quem se aproxima de Deus sabe que Deus vai a seu encontro. O verbo aproximar-se de Deus não tem sentido cultual, litúrgico, mas implica uma obediência concretizada em fatos reais na vida. A exortação de purificar as mãos é em sentido moral. Da mesma forma, purificar o coração é mais do que “processo de santificação”, é manter-se inteiramente obediente a Deus, sem dividir-se entre Deus e o mundo. Deus deseja todo o ser humano, coração e mãos. Os pecadores são aqueles que estão divididos, possuindo duas almas no peito, ou seja, louvam a Deus com os lábios, mas praticam o mal; professam a fé dentro da igreja, mas esquecem o cristianismo no limiar da porta de entrada. Deus fica sendo restrito ao sagrado, só de Domingo, mas o coração semanal está voltado ao mundo.
Para Tiago, é necessário fazer penitência, segundo o modelo do AT, com lamentos, aflição e lágrimas. O texto termina com uma exortação à modéstia e à humildade diante do Senhor. Deus promete que virá e exaltará todo aquele que abandonar as falsas seguranças do mundo, abandonar o apego à autonomia de se considerar superior ou igual ao Criador. Quem confia e se abandona nas mãos de Deus retoma a harmonia anterior ao pecado original. A exaltação dada por Deus não é no sentido temporal de poder, honra, grandeza e felicidade terrenas, mas indica a salvação escatológica, eterna e que não é mais corroída pela traça do mundo.
Vv. 11-12 – Tiago conclui, solicitando a abstenção da calúnia e da discriminação, do julgamento ao próximo. O correto comportamento para com Deus implica imediatamente o reto comportamento com o próximo. O AT condena a calúnia. Também no catálogo cristão dos pecados a serem evitados, a calúnia ocupa um dos primeiros postos. Tiago recorda que um pecado contra o próximo torna-se também um pecado contra Deus. Existe apenas um juiz e o homem não têm o direito nem o dever de ser juiz um do outro. Ao homem compete apenas observar a lei (moral cristã) e nunca ser juiz do próximo. Só existe um único e verdadeiro juiz: Aquele que no passado concedeu a Lei à humanidade, que enviou sua Palavra viva para julgar/salvar a humanidade e que, em seu tempo devido, irá julgar o homem segundo esta mesma Palavra. Somente Deus pode salvar ou condenar (Dt 32,39).
Padre Marcelo Lázaro