‘‘Cristo nos resgatou’’ (Gl 3,13): eis a Páscoa em nossas vidas!

Muito provavelmente de origem pré-israelita, a festa da Páscoa (hag happesah) celebrava a colheita da cevada no dia de plenilúnio (lua cheia), no início da primavera. Junto a isso, caracterizava-se também como um ritual sacrifical tribal de pastores nômades e seminômades, em que o sangue de um cordeiro deveria ser posto nos umbrais para afastar as forças maléficas e obter fecundidade e prosperidade. Sem entrar em muitos detalhes etimológicos, a raiz da palavra ‘‘Páscoa’’ [pesah] é muito discutida, pois evoca influências acádias e egípcias sobre o hebraico; Páscoa pode significar mancar (2Sm 4,4), saltar, sendo que esses verbos têm a mesma raiz, ou golpe [vinculada ao efeito do sangue nos umbrais durante a 10ª praga do Egito – Ex 11,1].

Postos esses elementos introdutórios, a ação salvadora/libertadora de Deus se dá em um momento preciso da história. De acordo com o biblista Luís Henrique Eloy e Silva, ‘‘numa certa primavera, Deus interveio na história de Israel, libertando-o do Egito, elegendo-o como seu povo e introduzindo-o na terra prometida’’, de modo que tal celebração tribal pascal [evento social] ganhou uma nova marca divina e um novo ponto de vista [teológico]. De um evento pastoril, a Páscoa tornou-se uma festa de ação de graças a Deus, que é a origem de tudo o que é bom e festivo. O povo de Deus, no Antigo Testamento, celebrava a Páscoa anualmente entre os dias 14 e 15 de Nisan [meados de março], com duração de sete dias de festa. A marca do festejo é o reconhecimento da ação salvadora de Deus quando, passando pelo Mar Vermelho, que é a prefiguração do batismo [salto da morte para a vida], libertou o povo das mãos do Egito (Ex 12).

O evento da libertação/salvação e toda a alegria que decorre disso ganham sua plenitude de significado na aspersão do sangue divino de Cristo que, na Nova Aliança, se torna o Cordeiro sem mancha para a libertação do pecado (Rm 7,24). A plena ação salvadora de Jesus, no mistério de sua Paixão, Morte e Ressurreição, é a Páscoa como golpe no pecado e salto da antiga Aliança, corrompida pelas más ações (Rm 9,6), para a nova, inaugurada pelo sacrifício divino do Senhor no altar da cruz [= amor/doação] (Fl 2,6-8). Desse modo, o próprio Deus (Adonai), autor do resgate libertador do Êxodo (9,4), torna-se o objeto sacrifical fundante da eterna Aliança em prol dos homens, encarnando-se e sacrificando-se Ele mesmo. A libertação da escravidão egípcia outrora, com vistas à Terra Prometida, tornou-se em Cristo o resgate libertador da escravidão do pecado, com vistas à Jerusalém celeste (Gl 4,26).

A atitude do resgate operado por Cristo ganha uma amplitude semântica maior na dinâmica do processo de corrupção que sofreu a Aliança do Sinai e a Lei. O Senhor entregou a Lei ao homem (Ex 20; Dt 5), boa e santa, para que fosse seguida como garantia de vida e liberdade [e como manutenção da Aliança]. Todavia, perdeu seu sentido em meio aos homens devido ao pecado. A Lei, que deveria resguardar a Aliança e seus efeitos de salvação/libertação, tornou-se, nas palavras de Paulo, ‘‘maldição’’ (Gl 3,13). Agora, a promessa primeira de Deus (Gn 15 = Gl 3,15) é realizada concreta e plenamente em seu Filho, morto e ressuscitado, que é a essência perdida da Lei (Mt 5,17). Cristo experimentou a morte [maldição da Lei] para transformá-la em vida [liberdade pela fé] e bênção a todo aquele que crê (Gl 3,14). Dessa forma, participando do Corpo e Sangue do Senhor [a Eucaristia], tomamos parte de sua morte para o pecado e ressurreição para a vida e liberdade original (Gn 2), vivendo em nós mesmos a santa Páscoa do Cristo. Por isso também que, celebrando a Vigília Pascal, transcorrendo toda a história da salvação/libertação pela Liturgia da Palavra, saímos da escuridão [templo de luzes apagadas] para a Vida [acendimento das luzes].

Para todo cristão, compreender o fato de ser um resgatado por Cristo da maldição do pecado, estruturado em nosso mundo, é vivenciar autenticamente o sentido da Páscoa. A festa pascal é memória teológica de um fato de salvação [que é libertação]. Uma salvação que começou no Êxodo, com o resgate do povo das mãos do Faraó, e que se perfaz no resgate, por Cristo Jesus, do povo que sucumbia nas mãos da maldição da Lei. Compreender o fato de ser um resgatado por Cristo, através de sua Paixão, Morte e Ressurreição, é ser filho no Filho “e, porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és mais escravo [da Lei], mas filho. E se és filho, és também herdeiro, graças a Deus” (Gl 4,6-7).

 

Pablo Henrique Borges Ferreira

Seminarista / 4º ano de Teologia

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