Se nos fosse dado experimentar sobre nossas cabeças a Coroa de Espinhos de Cristo, qual seria o nosso sentimento diante disso? Qual seria a nossa compreensão desta realidade, deste singular sinal de um poder que tenta humilhar um prisioneiro condenado à morte, conferindo-lhe esse signo de realeza às avessas? Dor moral, sofrimento atroz, dor física, amargura, tristeza, revolta diante da injustiça, mobilizariam o nosso espírito? Haveria lágrimas, murmúrios, queixas e gemidos perceptíveis aos circundantes?
O Cristo coroado de espinhos guardou silencio diante de sua injusta condenação e dos atos perversos que o atingiram. Sim, Ele silenciou porque nas mãos do Pai confiou, desde o princípio até o fim, o seu espírito. Jesus se entregou aos seus algozes, confiando na Justiça Divina, a cada passo de seu Calvário. Não se defendeu, apenas interrogou a justiça humana cf. João 18,23, apontando-lhe a ineficácia de sua capacidade de ser verdadeiramente justa.
Ao sermos, então, coroados de espinhos, pelo Cristo, como sentiríamos essa Coroa sobre nossas cabeças? Talvez, o primeiro sentimento, seria de reconhecimento de nossa pequenez, de nossa incapacidade de sustentar essa Coroa sagrada em nossa pessoa, em nossas vidas, cientes da ausência de mérito, de virtudes para tanto. De tal forma essa condição nos obliteraria o raciocínio que Jesus, em sua misericórdia nos diria, simplesmente:
-Reina quem se sacrifica.
Essa única frase, certamente, teria o poder de desencadear toda uma sequência de percepções e de raciocínios que nos fariam compreender rapidamente o seu sentido: quem se sacrifica, ama e quem ama com sacrifício, reina com Cristo.
Não podemos trazer para nossa reflexão o tema do diálogo fraterno sem antes nos atermos a essa realidade. A vida fraterna exige amor que se sacrifica pelo outro, que se compadece do outro, que reconhece o valor do outro, que participa da vida do outro com respeito à sua dignidade e com profundo e sincero espírito de solidariedade. A constante pergunta que deve nos assaltar é a que mobilizava Jesus no anúncio da Boa Nova: em que posso ajudar?
Quantas vezes Ele indagou: “que queres que te faça?” Lucas 18,41. Sua pregação foi integralmente, uma continua ação de compaixão que antecedia sua Palavra. Jesus se compadecia, atendia aos pedidos, às indagações, socorria a todos, demonstrava, com gestos e atitudes, o que é o Reino de Deus e explicava o Amor, a Lei de Amor divina, com palavras acessíveis. Ele queria que todos compreendessem o que é a vida fraterna, ou seja, como se constitui o Reino dos céus na terra.
Jesus abençoou e repartiu o pão, o pão material dado aos famintos de alimento para o corpo e deu graças e repartiu o Pão espiritual para os carentes de alimento para a alma. Ele mesmo, o Cristo, é esse Pão repartido que nos é apresentado na Liturgia Eucarística, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo cf. João 1,29. Jesus “queria que tivéssemos o memorial do amor com o qual nos amou até o fim” segundo o parágrafo 1380 do Catecismo da Igreja Católica. Assentou sua Igreja sobre Pedro, uma pedra humana (cf. Mateus 16,18) mediante uma única exigência: “amas-me? […] apascenta as minhas ovelhas”, cf. João 21, 15-17 e um único pré-requisito, a fé – Pedro reconheceu Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo cf. Mateus 16, 15-16.
Jesus entregou a Pedro as chaves do Reino dos céus e anunciou a natureza, a extensão de sua autoridade, dizendo: “tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. E afirmou que, sobre a sua Igreja, formada pelo Povo de Deus, apascentada por seu representante no mundo, ”as portas do inferno não prevalecerão” cf. Mateus 18, 16-19.
Sabemos, no entanto, que pode ocorrer algo ruim, como o comprometimento indevido deste tipo de autoridade quando o exercício da impiedade e o interesse pessoal que não é o bem comum, se adiantam e realizam o que Jesus misericordioso não referenda, impondo sofrimento, negando direitos, violentando a dignidade humana. Conforme nos diz Paulo em Gálatas 2, 19: “Na realidade, pela fé eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou pregado à cruz de Cristo”. Ou seja, a lei imposta pelos homens com seus preceitos não prevalece sobre a Lei de Deus, porque os coroados de espinhos estão pregados na cruz de Cristo, amando com sacrifício a todos. Ao ver o procedimento de Pedro contrário ao que pede o Evangelho, rejeitando os pagãos convertidos sem justificativa plausível, Paulo o censura diante da comunidade, argumentando no sentido de que “se a justiça se obtém pela lei, Cristo morreu em vão”.
A experiência concreta de diálogo fraterno, portanto, não pode ser imposta por meio de regras ou de qualquer tipo de coação, em uma vida comunitária de fé. A imposição gera desconforto porque se assemelha a uma Coroa de Espinhos que, depois de cravada em nossa fronte, perde o sentido original e passa a ser uma insustentável realidade que não se transforma em fonte de paz, nem para si nem para os outros, porque não se converte em permanente estímulo à compaixão que se manifesta em obras de misericórdia.
Ora, qual é a primeira obra de misericórdia que precisamos aprender a realizar para podermos nos dedicar a todas as outras? Encontramos a resposta em Efésios 2, 13-20. Paulo nos diz que Cristo:
”Veio para anunciar a paz a vós que estáveis longe, e a paz também àqueles que estavam perto porquanto é por ele que ambos temos acesso junto ao Pai num mesmo espírito. Consequentemente, já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus”.
Em Marcos 7, 24-30, encontramos a primeira menção de que o Reino de Deus é para todos, conforme afirmou Paulo, em Efésios 2, 13-20. Jesus diz à mulher pagã, de origem siro-fenícia: “Deixa primeiro que se fartem os filhos, porque não fica bem tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cães. Mas ela respondeu: É verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas dos filhos. Jesus respondeu-lhe: Por causa desta palavra, vai-te, que saiu o demônio de tua filha”.
Em seguida, Jesus se dirige ao território da Decápole, uma região com um grupo de dez cidades, na fronteira oriental do Império Romano na Judeia e Síria.
Nessa região, Jesus cura um surdo-mudo que lhe apresentaram, rogando-lhe que lhe impusesse a mão: “Jesus tomou-o à parte dentre o povo, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva. E levantou os olhos ao céu, deu um suspiro e disse-lhe: Éfeta!, que quer dizer abre-te! No mesmo instante os ouvidos se lhe abriram, a prisão da língua se lhe desfez e ele falava perfeitamente”. Marcos 7, 31-35.
Essas duas curas estão interligadas por um fio de misericórdia e traduzem algo definitivo que Jesus nos demonstrou: quem julga é Deus, quem perdoa é Deus que se compadece e quem está chamando aquele que foi visitado por sua graça, é Deus também.
Assim sendo, o diálogo fraterno, primeiro passo para a realização de todas as obras de misericórdia, fica realmente impossível para aqueles que querem se colocar no lugar de Deus e condenar o semelhante no lugar de Deus, não se compadecendo diante do sofrimento ou da necessidade alheia de compreensão e de compaixão, se interpondo, assim, entre a Vontade do Pai e a de seus filhos. Quem se recusa ao diálogo age desta forma, se reserva o direito de indicar para o Criador quais são as criaturas suas, que Ele deve ou não amar.
Oremos muito, constantemente, para que os nossos olhos se voltem, sobretudo, para todos aqueles que estão esperando pela cura que vem através, também, do nosso amor e peçamos que Jesus nos diga ”Éfeta!,” para que nossos ouvidos moucos se abram e nossa língua se desprenda de suas amarras impiedosas para anunciar o Reino de Deus, não somente com palavras, mas com as nossas obras de misericórdia, como tão bem exemplificou São Francisco de Assis.
Rita De Blasiis
PASCOM da Paróquia Nossa Senhora de Fátima de Uberaba.