Guerra e Paz

Com esse título, o escritor russo Liev Tolstói se consagrou na literatura universal, criando um novo estilo literário, um misto de realidade, ficção e romance. A obra foi lançada num periódico da época, entre os anos 1865 e 1869, e trazia como cenário as guerras napoleônicas, no contexto da invasão russa. A riqueza e o realismo de seus pormenores, assim como suas numerosas descrições psicológicas, fazem com que este seja considerado um dos maiores livros da História da Literatura. O autor aborda a complexidade da guerra, com suas sérias consequências históricas e humanas.

Aquela não foi a última vez que a Rússia se envolveu em situação de guerra… Vale lembrar a atuação da Rússia nas duas guerras mundiais e outras guerras mais recentes, como foi o caso da Criméia, da Síria e, nesses últimos meses, da Ucrânia. Não é fácil compreender a complexidade das guerras. Certos simplismos aparentes manifestam nossa dificuldade em aprofundar as causas históricas de conflitos que causam tantos danos. Numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Há, ainda, os interesses de agências de informação que atuam a serviço de ideologias.

Toda guerra representa o fracasso do diálogo, o fracasso do respeito pela dignidade do ser humano, o fracasso da humanidade. Praticamente em tempo real, assistimos cenas atrozes e dramáticas vindas da Ucrânia. São inocentes sendo dizimados, crianças e idosos privados de esperança; famílias destruídas e desterradas; residências e prédios bombardeados; praças e parques destruídos; pessoas indesejadas sendo atadas em postes e ridicularizadas; soldados prisioneiros de guerra sendo humilhados publicamente… O cenário é caótico: fogo, fumaça, destroços, corpos abandonados. O ser humano manifesta o seu lado mais letal e patológico.

Difícil compreender que tenhamos chegado a esse nível de desumanidades. Parece que perdemos a memória histórica, como nos recordou o Papa Francisco, no ato de consagração a Nossa Senhora, do fim da tarde do dia 25/03: “Esquecemos a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras mundiais. Descuidamos os compromissos assumidos como Comunidade das Nações e atraiçoamos os sonhos de paz dos povos e as esperanças dos jovens. Adoecemos de ganância, fechamo-nos em interesses nacionalistas, deixamo-nos ressequir pela indiferença e paralisar pelo egoísmo. Preferimos ignorar Deus, conviver com as nossas falsidades, alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular armas, esquecendo-nos que somos guardiões do nosso próximo e da própria casa comum”.

Parece que não aprendemos as lições da pandemia que acabamos de atravessar. Foram tantos os sonhos de humanidade que acalentávamos enquanto assistíamos, atônitos, os caminhões a transportar corpos de vítimas da Covid-19 para crematórios. Quando éramos privados do relacionamento físico, fechados em nossos lares, fazíamos projetos de crescer em humanidade. Bastou começar a tirar as máscaras cirúrgicas para vermos cair também nossas máscaras humanas e voltarmos à mesquinhez e à hipocrisia de antes, sem nos envergonhar…

As cenas da guerra na Ucrânia causam nova consternação. Estávamos acostumados com cenas de guerras na África, na América Central, no Oriente Médio… Eram rostos indiferentes para nós: negros africanos e haitianos, morenos iraquianos, curdos, líbios e sírios. Isso já fazia parte de certa “banalidade do mal” e nem mais disso fazíamos conta. Os rostos das vítimas da guerra agora branquearam. São rostos claros, loiros, de olhos azuis, procedentes do Leste europeu. Causa indignação assistir esses rostinhos arrastando suas malas em meio à neve, por vários quilômetros, ou disputando um lugar nos trens lotados, para fugirem das regiões atingidas pelos bombardeios. Parece que olhos azuis e peles claras nos causam mais consternação…

Como compreender que irmãos lutam contra irmãos? Afinal, tanto russos como ucranianos procedem de uma mesma etnia, os povos eslavos. A questão é bem complexa. Exige visão histórica, reflexão geopolítica e compreensão dos interesses ideológicos de dominação. A ideologia ocidental nos apresenta uma solução simplista, a ponto de eleger um “bode expiatório”. Na verdade, a política expansionista da OTAN provocou uma crise sem precedentes na Europa e no Hemisfério norte, com consequências desconhecidas até o presente momento.

Mesmo sem conseguir compreender a complexidade das guerras e suas consequências nefastas, continuemos acreditando que “outro mundo é possível”. Continuemos a tecer, pacienciosamente, as novas relações, baseadas no respeito pela dignidade humana, nos valores éticos e evangélicos, na justiça do Reino, no diálogo que constrói humanidade. Em meio à hipocrisia do expansionismo ocidental, aos corpos dilacerados pelas armas e às inverdades da mídia, ousemos sonhar: “Que a dor não me seja indiferente, que a morte não me encontre um dia solitário sem ter feito o que eu queria… Que a injustiça não me seja indiferente… Que a guerra não me seja indiferente… Que a mentira não me seja indiferente… Que o futuro não me seja indiferente” (León Gieco).

Pe. Geraldo Maia

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