“Dom Quixote de la Mancha”, obra de Miguel de Cervantes, foi o clássico que consagrou a língua do Reino de Castela, chamada de castelhano e, tendo sido oficializada mais tarde na Espanha, passou a ser denominada espanhol.
Tal clássico da literatura mundial narra as aventuras e desventuras de um homem de meia idade que resolveu tornar-se cavaleiro andante depois de ler muitos romances de cavalaria. Providenciando cavalo e armadura, Dom Quixote passa a lutar para provar seu amor por Dulcineia, sua musa imaginária. O destemido cavaleiro é sempre acompanhado por seu fiel escudeiro, Sancho Pança.
“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça!”. Essa é uma das frases mais citadas, colocadas na boca de Dom Quixote. Conhecedores da obra afirmam que a frase nela não consta. Foram verificadas as edições brasileiras da Nova Fronteira (2017) e da Penguin-Companhia (2012), bem como a edição espanhola da Real Academia, publicada digitalmente em junho de 2015, e nada foi encontrado.
Seja como for, a frase acima explicita o espírito de Dom Quixote. Montado em seu cavalo Rocinante, vai à procura de um mundo novo. É uma metáfora do ser humano, na aurora da Modernidade. Cervantes se serve da loucura ou alucinação, como lugar literário, para trazer à luz aspectos de uma nova fase histórico-cultural, como tão bem o fez seu contemporâneo Shakespeare, especialmente em Hamlet.
Uma das cenas mais conhecidas e emblemáticas dessa importante obra é narrada no Capítulo VIII (Parte I), intitulado “Do bom sucesso que teve o valoroso Dom Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação”. Seguiremos aqui a edição da Nova Cultural (2002), com tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo.
Os dois desbravadores do mundo cruel se deparam com trinta ou quarenta moinhos de vento. Neles, Dom Quixote enxerga “desaforados gigantes” contra quem decide travar batalha. Para o “Cavaleiro da triste figura”, trata-se de “boa guerra”, pois “bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra”. Em vão, Sancho tenta dissuadir seu amo e trazê-lo à realidade. “Bem se vê — respondeu Dom Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em feroz e desigual batalha”.
À distância, Sancho assiste incrédulo à investida corajosa de Dom Quixote, montado em seu Rocinante, indo em direção aos moinhos de vento, armado com sua lança. Cego por sua obstinação, não ouve as vãs tentativas de seu fiel escudeiro e brada aos imaginários inimigos: “Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe”. Com um pouco de vento que surge, as velas dos moinhos começam a mover-se e Dom Quixote está certo que seus oponentes não o haveriam de intimidar. Chama novamente à memória sua musa inspiradora, a doce Dulcineia, e se arremete a todo galope em direção ao primeiro moinho que se encontra a sua frente, convencido de que se trata de um inimigo gigante.
Cervantes narra a cena fatídica: “dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo afora”. Podendo prever o desastre, Sancho corre a acudir seu amo. Mesmo com o infortúnio acometido, Dom Quixote ainda não se convenceu de que tinha sido iludido por um transe e está certo de que “as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças”. Sua justificativa foi que seu sábio inimigo havia transformado os gigantes em moinhos, para lhe “falsear a glória de os vencer”.
A loucura não era privilégio da aurora da Modernidade. Novos moinhos de vento hoje são transformados em inimigos imaginários. Pior, o solitário cavaleiro se torna triste figura de uma parte da humanidade iludida por falsos inimigos. Os “Sanchos Panças” atuais continuam a advertir que se trata apenas de moinhos de vento “e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros”. São muitos que se investem a esses moinhos de vento com suas armas em riste, julgando estarem prestando um bem à sociedade. Devaneio, alucinação, loucura… O desastre está anunciado e suas consequências são imprevisíveis.
Dom Quixote continua a ser, agora, metáfora do ser humano em tempos de Pós-modernidade, de forma mais intensa e nociva, à procura de inimigos imaginários, condição para manter-se em batalha, numa visão maniqueísta da realidade. Aumenta o número de alucinados, diminuem os lúcidos.
Pe. Geraldo Maia