Em seu “Ensaio sobre a cegueira” (livro, 1995; filme, 2008), Saramago usa a cegueira física de seus personagens fictícios para falar sobre a cegueira mental de pessoas reais. Em estilo de realismo psicológico, o autor apresenta um diagnóstico da sociedade ocidental contemporânea, através de personagens, conflitos, desejos e pensamentos, com a clara intenção de retratar a condição humana.
Saramago se serve da categoria de “cegueira branca” como representação de nós todos, mergulhados na banheira das vaidades. “Cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu”, esclarece Saramago (pág. 39). Com um refinado deboche literário, o autor escreve: “Seria horrível, um mundo todo de cegos. Não quero nem imaginar” (p. 60). E esclarece a concepção de vida daqueles que sofrem de “cegueira branca”: “Para estes, a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa” (p. 94).
Já no fim de sua obra, o escritor português, vencedor de um Nobel de literatura, constata: “Costuma-se até dizer que não há cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (p. 306). E assim ele vai concluindo seu ensaio: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem” (p. 310).
Depois de tantas luzes e com todo o desenvolvimento tecnológico a que chegamos, aprofundamos nossa cegueira. Vivemos a cultura da cegueira, que banaliza a realidade. A morte dos fracos se torna banal. O descarte dos marginalizados se torna banal. O menosprezo por pessoas pretas se torna banal. A discriminação de pessoas de orientação sexual diferente se torna banal. Banaliza-se o ódio ao outro que pensa diferente de mim. A esses banalizados se declara a perseguição, conspira-se sua eliminação, deflagra-se o medo. “O inferno são os outros”, já preconizava Sartre.
“A Vila” (Night Shymalan, 2004) é um filme metafórico da condição humana, tendo o medo como motivação. A Comunidade vive em uma vila, no meio de uma floresta, com o intuito de preservar a inocência das pessoas. Há limites rigidamente estabelecidos entre a vila e a floresta para manter o acordo entre o Conselho de Anciãos e os supostos monstros denominados “Criaturas que nós não mencionamos”. Ivy é uma linda jovem educadora. Sua condição de cegueira lhe proporciona um diferencial: sua altíssima sensibilidade. Com suas próprias palavras, ela esclarece a seu amado Lucius seu modo de visão: “Eu vejo o mundo, mas não como você o vê”.
Ivy se prontifica a vencer o medo, atravessar a floresta e buscar socorro para salvar Lucius, quando em risco de morte. O Conselho de Anciãos a libera para enfrentar seu desafio, com um profundo diálogo. “Só podemos ter esperança, o que há de belo nesse lugar. Não podemos fugir do sofrimento. Ivy está indo em direção da esperança”. Ao que o colega assegura: “Ela é a mais capaz do qualquer um de nós. Ela é guiada pelo amor. É o amor que move o mundo. O amor é capaz de tudo”.
É o amor que nos salva das densas trevas de nossa cegueira e nos ilumina para a vida nova. É este amor capaz de salvar o mundo da “cegueira branca”, nesta cultura de pós-verdade. O Apóstolo Paulo nos assegura: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade” (Ef 5,8-9).
Sim, fomos iluminados pela luz que vem do alto. Vençamos a cegueira, vençamos as trevas do medo, vençamos a cultura do ódio para vislumbrarmos a luz da esperança. Assim iluminados, sejamos agentes de luz e esperança para tantas pessoas que agora, mais do que nunca, anseiam por luz e esperança. Como Yvy, deixemo-nos ser movidos pelo amor que supera o ódio e o medo… e salva o mundo.
Padre Geraldo Maia